quarta-feira, 21 de outubro de 2009


Cafe terrace on the place - Vincent van Gogh

Na chávena de café adoço
a ilusão dos dias imperfeitos,
girando em remoinho a colher
pela memória dos pomares
de limões ácidos e maduros.

Com a brisa nocturna sopram
acordes vagamente salgados
e na plenitude das máscaras
estendo a alma e apresento-me:
- aqui, eu não sou Eu
e tu não és Tu, nem Ele.

O diálogo pinga sobre a mesa
esculpido em monólogo teatral
de palavras vidradas, desencantadas
no fundo dos bolsos poeirentos.

E no silêncio dos nossos ossos
não somos mais que carcaças
de velhos veleiros sem idade,
num cais nocturno e anónimo,
esperando sem vontade nem fé
uma corrente de sul, ou um milagre:
Que te afaste de ti e ele de mim,
Que me naufrague nas outras de mim.

domingo, 11 de outubro de 2009

Amputação





Amputação

Sentada nos desperdícios de dias-náusea
desvio o olhar do lado esquerdo, o do coração,
onde estás entranhado no calcário silencioso,
trincando feno jovem e rodando as pedras
que atirámos pelos desfiladeiros repetidos,
ouvindo a negação da sua ancestral resposta.

De novo apunhá-lo-te nas costas do vento,
mas tu insistes em chicotear-me a alma
com verdades e amarras de ferro, só
pelo prazer de me estenderes a mesma
esponja calmante de vinagre aquecido,
nesta crucificação perpetuada de tédio.

Sempre que tento a tua amputação de mim
insistes em te multiplicares, deixando-me
assim, insuportavelmente cega e muda.
Entranhaste-te no silêncio nu de mim
e já não sei partir das enseadas de ti,
sem me deixar a mim náufraga também…

Tiraste-me os dias harmoniosos da escrita,
não posso escrever mais sobre mim,
sem escrever sobre ti e sobre o terror
da amputação das asas que vou fazer
para sobreviver…sobreviver…e não viver…

sábado, 20 de junho de 2009

Funâmbulo





Trepo pelas linhas de aço fino
de um papel espinhoso e estéril,
ocultando-te no raio de uma vertigem...
Busco o espanto baptismal da cria ao nascer,
cheirando palavras tenras, orvalhadas
impronunciáveis ao vento e à chuva.

Avanço na voragem dos dedos trémulos,
aportando no cimo de mim,
espreito nas arestas o que nunca senti,
mas escorrego....tropeço em ti
e caio em mim, num poema-novelo confuso.

Neste ápice sou funâmbulo do papel farpado
ensaiando acrobacias nas palavras,
procurando o aplauso do público ausente
e o arrepio gelado na tua nuca quando caio
desta teia urdida a ferro e fogo,
verdadeira corda-bamba de letras aladas
que nos algema ao circo da vida,
vivida sempre pela metade, sempre vacilante...

Na última bancada lá estás tu,
sorriso irónico e aplauso metálico, oiço-te gritar:
« Levanta-te, pega nas palavras e voa de novo,
desta vez sem olhares para mim! »

domingo, 7 de junho de 2009

Gaveta



Gaveta

A tua imagem espreita perdida
num canto oblíquo da gaveta,
onde amontoo os papéis do presente e
as almas do passado, escondidas
entre o lixo, o pó, e a ilusão doce
do cheiro dos limões maduros.

Diz-me,(pois já não me sei lembrar...)
Houve um dia em que te dei a mão
e toda a multidão se esfumou?
Já não sei se essa foi a verdade
ou se a sonhei na dormência dos dias.

Sabes...já não sei se tivemos garras
e se cantámos abafados pelos gritos
dos mochos, nas florestas de Elfos,
chapinhando as asas roubadas
nas grutas germinais de águas gélidas.
Sabes... já não sei se existes de verdade,
ou se te moldei com o pó das estradas,
que fui percorrendo em círculos calados,
amassando as dúvidas e os vazios
com a argila das tuas palavras aladas.

Sim, eu sei ...criei-te com a forma do que és
e a alma que para ti fiz, costurando os
retalhos de mim e de ti que se perderam
ao olharmos os outros e as folhas caídas.

Sim... nós sabemos, quando tudo abandonei
ficaste tu e um búzio,
amarrotados num poema inacabado no fundo
desta gaveta poeirenta e desarrumada.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Poema com vista para um castelo de areia





Outrora fomos uma enseada dourada
com cheiro a sal forte e a peixe arredio,
com pegadas de búzios náufragos, espiadas
por gaivotas ansiosas entre marés cheias.

Hoje pego em ti com as mãos de concha
e construo com a areia triste, molhada,
torres e muralhas num castelo de exílio
renovando à força a espuma do passado,
entre os pés incautos dos veraneantes
que passam e de nada suspeitam, para além
daquele castelo inconsistente de areia.

A maré alta de mim destrói-o totalmente
e dele ficou só este poema arenoso virado
para um castelo de areia que só existiu
porque te imaginei encerrado dentro dele.

Mas na verdade, de ti, só ficou este mau poema
feito num dia sem praia, veraneantes, ou sol...

sexta-feira, 13 de março de 2009

A Boca



A boca
murmúrio longínquo
de sal nas ondas
e do branco da espuma,
raio de sol perdido
em chuva ou neve,
caverna onde o sopro
das palavras e das brisas
ecoam
agitando
as águas do lago estagnado
do meu peito.

Boca
de um beijo morno
do sal, da vida e da morte.
O começo e o fim
de um segredo oculto
e do domínio do prazer.

A boca
falando a outra boca
beijando
mordendo
agitando
cerrando-se
Morrendo.

sábado, 14 de fevereiro de 2009




Na Sombra das Aves

Vem, meu amor, sentar-te junto ao rio
florindo as mãos de flores silvestres
embalados pela música vertiginosa do rio,
no fim desta tarde explosiva de carmim.

Esquece todas as angustiosas esquinas,
que nos ferem os pulsos quotidianos e
saboreia na planície o aqui e o agora,
sem ontem, sem amanhã, sem morte...
Deixemo-nos ficar parados, simplesmente
debaixo das árvores doces em flor,
contando uma a uma as sombras das aves
que planam livres no azul por cima de nós,
sem pensarmos em nada, nem sequer
porque te chamo desde sempre, meu amor...

O rio corre com o perfume das flores da tarde
e ouve-me dizer baixinho na erva macia:
- Vem ser feliz aqui, na sombra das aves.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Poema do vento inconstante


Poema de vento inconstante

Não falo deste vento esterilizado de sal,
falo daquele rumoroso, que esculpe no frio
circular, as brancas fórneas calcárias
e traz aquém-mar o cheiro a mito acre
das velhas plantas serranas e selvagens.

Não falo sequer do vento quente de leste,
sopro do deserto árido queimando as veias,
feiticeiro das paixões viscerais do luar.
Falo daquele vento sonoro, claro e intenso,
capaz de traduzir mil palavras enigmáticas
em diálogos húmidos de silêncio fértil...
É o vento metáfora da errância dos trilhos,
onde as rochas duras do olhar ficam nuas.


Falo daquele vento animal livre e bravio
que te revela neste poema de saudade,
onde o vento inconstante escreve sem cessar
versos marcados com cheiro a rosmaninho,
enquanto nos olivais, a melodia dos melros
eleva no ar, o sopro alado deste reino-doce.