sábado, 18 de outubro de 2008

Viagem







Partir de mim com nada nas mãos,
contornar as ruínas perdidas na urze
do monumento sagrado que um dia foste
e olhá-las sem curiosidade, sem as tocar,
pelo raio fulminante de um instante-luz.

Passar entre os sulcos e rugas de pó,
avançar guiada pelo som das águas,
num desfiladeiro de pedras quartzo,
entre grutas, estalactites e tomilho,
sem encontrar o tesouro dos algares.

Entrar nas noites-lírio sem procurar
o mapa iluminado da estrela Sirius.
Percorrer uma a uma pela esfera lunar
as coisas que deixei para trás vazias,
sem sentir a falta real de nenhuma.

Viajar rumo ao horizonte de mim,
sem levar nada... nem sequer a ti,
nesta bagagem de palavras-fráguas
que arrasto a custo, com náuseas,
empurrando o vento e as certezas
de que esta é uma viagem circular,
até ao centro incandescente de mim.

domingo, 12 de outubro de 2008

Abismo


Abismo

Rio
correndo
serra abaixo,
saltando
afogando
esgueirando-se
entre mim e ti.
Somos
projectados
em cascata
que caí continuamente
sem vermos o fim.
No precipício
há uma gruta sem luz,
onde não entramos
onde recusamos
onde evitamos:
ser eu;
seres tu.


Na escuridão há fontes,
mas as mãos não estão em concha,
não nos matam a sede,
não nos sossegam as dúvidas.
Apenas relembram
o frio da serra
e a lua que lambemos
à falta de pão
à falta de vinho
à falta da nossa carne,
exposta nua à luz,
perdidos
em caminhos tortuosos
da mente em cascata
e em rios de renúncia .

Prontos?
Sim !
E saltamos para o abismo...

domingo, 5 de outubro de 2008

Filho das águas




A chuva humilhante escorre,
lembrando-nos a felicidade,
de corrermos à solta, fugindo
por entre os pingos de cristal.

No chão molhado e espelhado
pintamos aguarelas de cor e luz,
nas sombras cinzentas da noite
perdidas nas insólitas calçadas.

Aqui aprendemos a humildade
dos pequenos gestos naturais:
quando para não escorregares
me dás a tua pequena mão fria
e eu compreendo, filho das águas,
qual é realmente o meu lugar,

Nesse momento a metafísica
torna-se um jogo inocente de crianças.