quinta-feira, 17 de julho de 2008

Laranja metade





No gume inseguro do olhar

a morte renasce,

vaga imagem de outrora

onde o cheiro maduro

das laranjas embriaga:

Bem perto do desejo

Bem perto do fim...



Fogo de laranjas

doce, quente, ácido,

sumo escorrido da mão para a boca

fertilizada com abelhas e terra.



Na noite escura

a fogueira invisível do olhar

espera o cheiro maduro,

dessa laranja metade

Correndo na seiva da manhã.

segunda-feira, 14 de julho de 2008

Canção para um pássaro morto


Em ti havia um pássaro,

bandido dos beirais,

roubava o sol da minha janela

antes de ele me iluminar.

Todas as Primaveras aparecia

acordando-me com o seu canto,

lembrando que o futuro em nós

podia ser já agora, aqui, sem mais nada...


Ontem e hoje não me embalou

com o seu encanto de cristal,

a janela do meu coração ficou

vazia e sozinha na manhã clara,

talvez tenha voado contigo para longe

abrindo a gaiola das minhas mãos.

Hoje morreste-me nesta aurora

e no meu olhar em água corre lenta

a tua canção, a do pássaro morto.




Tráfico de azuis nocturnos


No silêncio inquietante das noites,

entre as fases da lua e o mapa das rugas

que se acumulam em sulcos na pele,

vamos traficando voos feitos de azul...


Rasgamos o quotidiano inerte e branco

com pinceladas secretas da cor visceral,

é um azul-noite tirado das fráguas distantes,

o mesmo que as aves nocturnas catam nas asas

e nós sentímo-lo nos dedos, garras inquietas,

desenhando palavras que o íntimo dita,

para além do nosso corpo, para além

do racional que a nossa mente suspeita ver.


Sim, este foi mais um voo azul, nocturno,

traficando aquilo que não é sensível aos olhos...

e mesmo estas palavras parecem falsas para revelar

a plenitude alada destas noites brilhantes e secretas.

sexta-feira, 11 de julho de 2008

Marca de água


Amanheceu na calma uma chuva inesperada

lavando a alma com línguas transparentes.


Nas folhas jovens escorrem gotículas

revelando às mãos vazias o perfume

adocicado das violetas e das rosas,

o acre bravio do malmequer serrano,

fundido no vento com a menta fresca

e o ácido suculento dos limões maduros.


Estes cheiros desvendam uma figura

observável à transparência dos sentidos,

uma certeza gravada numa marca de água,

entranhada entre o limiar da carne e da pele

e que hoje, misteriosamente, cheira a feliz.


A chuva abre sulcos de água na terra

e desenha risos no jardim labiríntico,

ao som das brincadeiras de criança.

A imagem escondida na pele sorri-me

nos dedos e a tua alegria renova a paz

no muro branco da minha alma lavada,

fico com o teu cheiro nas minhas mãos

transfigurado numa doce marca de água.



O cão de Pavlov em mim



O teu sorriso é um luminoso isco manipulador,

com cheiro de saliva proibida e murta fresca.

Hipnotizada cada dia nessa voragem de dinamite,

finjo para ti a mansidão calma do luar primaveril.

Só nas noites com encruzilhadas de demência

percebo que testas em mim a teoria de Pavlov,

fico condicionada pelo estímulo do teu olhar estrelar

e só penso numa recompensa perigosamente doce...


De cima do meu orgulho, combato-te enraivecida,

fujo para a segurança dos muros nus caiados,

repetindo maquinalmente a mesma pergunta:

«Afinal e na verdade que posso esperar de ti? »

- Nada, eu sei... a não ser sentir-me o cão de Pavlov

salivando à espera de uma recompensa frugal,

por ter cedido ao teu sorriso de Anjo-mau.


Bem sabes que isso jamais te darei o gosto de ser...

assim, à falta de uma arma acutilante nas mãos

dou-te a pólvora seca deste olhar, pronto a matar-te ,

enquanto trauteio “...You`ve a fast gun...” dos Pavlov`s Dog...