domingo, 31 de agosto de 2008


E a noite abre-me os olhos

Na serpente enrolada dos dias frios
as estátuas ilusórias rodopiam na poeira,
confundidas no sol, brilham magnéticas,
para além dos vagos montes, imprecisas.
Avançam em aves alucinadas e mudas
calando frustrações do corpo abandonado,
fazendo com que tudo no ar seja incerto.

O sol fere a alma, cegando a frio
a consciência e o lume dos sentidos,
só a brisa da noite me abre os olhos,
só nela sei que quadro oculto é esse
que a mente vai enrolando no linho dos dias,
protegendo a sua identidade e o meu lugar.

É noite e voo rumo a mim, de olhos bem abertos...

Filhos de Dédalo

Dédalo peço-te o que nunca ousei:
- constrói-me umas asas silvestres
com penas de tordos e estorninhos,
enlaçadas com ervas mediterrânicas,
iguais as que construíste para Ícaro.
(O teu filho preferido, mas o mais
irresponsável e ingrato de todos.)

És meu pai e não me amas, como a ele...
Sou a tua filha-cardo da serra árida,
fruto do sémen aquoso de velho criador
com a sua estátua, num sopro de mulher,
abandonada por ti, em pedra de calçada.

Sou refém do rei Minos e de uma vontade
que me suga a alma em círculos orvalhados.
Incapaz de roubar o fio condutor de Ariadne
rumo ao perfil molhado do belo Teseu,
o único capaz de matar este minotauro,
que me galga nas veias de cal e me prende
no bolor, negando-me o voo num céu de luz
livre deste labirinto de Creta, dentro de mim.

Pai, não te posso perdoar, nunca!
Amaste só um dos teus filhos, e logo
aquele que queria tocar o sol, enquanto eu,
livre de mim, sem labirintos, queria amar Teseu...

quarta-feira, 27 de agosto de 2008


Cleptomania das mãos

Na nebulosa esquina da distância, escravos
de uma idade menor, os silêncios velados,
os olhares de noite escura cheiram-nos
a uma tristeza muda, de terra húmida,
sem o abraço de qualquer salvação possível.

Quando esbarramos na encruzilhada do olhar
apetece-me roubar-te um sorriso luz,
ou ir buscar às escondidas um raio de sol,
para te ensinar que para além da escuridão
brilham galáxias de fogo e campos de paz lunar.
E aqui, nas florestas de lobos e anões-bruxos,
sem farsas de gesso, podes ser quem quiseres
até mesmo quem julgas ser, na verdade de ti.

Na inércia dos papéis diários e convencionais,
as mãos nunca controlam a sua cleptomania
e mesmo à-beira-dos-outros, roubo palavras,
segredos brancos de soslaio, só para te levar,
ao trilho da floresta de cal, onde podes correr
com os lobos nocturnos nas sombras da lua,
afastado das barreiras de aço farpado,
especialmente daquelas com que cortas os pulsos quotidianos.

Toma, roubei para ti mais um olhar em forma de estrela,
tira-o das minhas mãos criminosas e foge com ele,
já que eu tenho de ficar aqui, nocturnamente sem ti...