terça-feira, 15 de abril de 2008

Poema abstracto





Num transe surreal, crio-te:
tens alma de bruma inicial,
corpo rasando o nada desta hora ...
Cais-me mudo, em abstracto
pelo papel frio de cal branca,
rodopias neste pincel ocre,
levantando poeiras do que és.

Familiar na esfinge hexagonal
apareces geométrico ao toque.
Desafias-me rindo da paleta:
- és Salvador... mas não Dali;
és Daqui, do meu sangue estéril,
inundando traços em cruz, cegos
de um quadro que não sei pintar.

As mãos estão limpas e castas
renegam as tintas, a tela e a pele,
fogem intactas à carne aquosa
e materializam-te vago, ao acaso:
quadro surreal de arestas angulosas,
corpo de lua, com olhos de fumo-doce,
prisioneiro deste poema abstracto.

Clepsidra


Que pena a clepsidra só medir a água do tempo
e não a força aquosa do mar, pois só ele sabe
as vezes que fomos gaivotas com asas-maresia,
e pés no chão, enterrados à flor dos outros.

Que pena ela não conseguir medir a luz da água
brilhando na fusão total dos olhos em clarão,
sem a obrigação de dar e receber, num sopro
de paz sideral, felizes por estarmos de novo
frente a frente, com a água limpa do nosso olhar.

Que pena a clepsidra não medir a vertigem de saliva
nos sorrisos de soslaio, quando apesar da fronteira
do azul lunar do mar, escrevemos poesia à distância,
com o instinto vital da cria faminta e rasgamos palavras,
em busca da melhor, da mais forte, da perfeita...
Embora saibamos que o mais importante ficará sempre
por dizer, pelo menos até ao nosso próximo poema...

Que pena a clepsidra só medir a água do nosso tempo.

Metáforas de sangue





Papoilas rubras cortando mãos de linho,
cerejas maduras espraiando prazer
à boca escarlate na voragem da saliva.
Óleo vermelho, viscoso, pulsante
nos hibiscos corados de tédio.

Guernica de novo em Sarajevo,
ou num mártir pintado de deus
que se imola na ara das bestas.
Os meus olhos raiados de sangue,
são rajadas de balas no muro
de um pelotão de fuzilamento,
quando te olham sorrindo
cuspindo uma paz assassina
e dizem: - que fiques feliz com ela...

Post-scriptum


Esquece todas as palavras que um dia te disse,
eram somente desenhos infantis e coloridos
eram pó das estrelas, fragmentos de brisa
com cheiro a ondas e brilho de lua cheia,
eram palavras talhadas a fogo, lembrando
tudo o que permanece numa gruta visceral,
vindo à luz do dia em páginas de cal branca
preenchidas com tinta preta e dedos ansiosos.

As palavras que agora de mim ouvirás, perderão
todo o poder encantatório, toda a transgressão,
serão meras palavras, pouco para ti decerto...
mas serão as únicas que saberei dizer ao sol...
Assim, se numa noite de Verão o meu olhar
se acender e as palavras ressuscitarem,
poucos o verão... e tu desviarás o olhar
fingindo não ver o que não quero dizer.

P.S- Este poema é um post-scriptum
para perceberes tudo, sem perguntares nada.