sábado, 22 de setembro de 2012

Hoje, nenhum olhar

O dia avança numa página branca amputado de palavras agridoces, restaram os monossílabos ondulantes entre o caos e a ambiguidade ácida dos sentidos, vagamente perfumados. As letras não fervilham no dedilhar dos dedos intermitentes na caneta. Hoje emudeci, fui atraída pela dança rodopiante dos ponteiros do relógio, pendurei os sonhos no ponteiro maior, hirsutos como brasas apagadas, cinzentos. As frases atropelam-se nuas e confusas nada parece amortecer esta página oca. Sim, hoje parti definitivamente de mim, vogo ao acaso no leito de ti lentamente, sem corrente, sem rumo, sem sobressaltos… Hoje, nenhum olhar no mundo vai desengaiolar as frases voláteis, vou ficar em silêncio. Shiuuu…, não me dês palavras, almas em onda ou olhares, deixa-me entregar a página rigorosamente em branco, o que escreveria hoje, jamais teremos oportunidade de ler.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Rizoma

A raiz com dedos antropomórficos
Remexe a terra, rasgando veias de seiva,
São rizomas secretos prontos a parirem
sem sangue, suor ou dor uma nova planta.
Esta aqui é uma Espada de São Jorge
pronta a matar, envenenando os poros
subterrâneos da pele em metamorfose,
é uma arma verde e amarela acutilante
Pronta a ramificar até ao olhar de pedra.

Outro rizoma avança do caule assexuado
É um casulo de um lírio-de-paz silvestre,
Ou uma crisálida de orquídea violácea
Que procura rasgar e pousar na sombra
De duas cinturas de basalto e calcário,
lá além, onde o rio subterrâneo toca
a cal e cai por gargantas nervosas,
silenciosas que estrangulam as palavras
até à dor das minas sufocantes, castradas.

Silêncios de púrpura macios

Nos dias de finais quotidianos
volto sem mim à casa vazia,
sento-me nas escadas de mim,
na casa alada e nua da infância.
Com as mãos de fantoche recrio
o voo dos pássaros, rasando
os ninhos de argila e feno, agito
os dedos em bailados picados,
cronometrados pela cadência das brisas.

Entranha-se o cheiro doce a alfazema
com os citrinos gulosos do pomar,
surgem, em compasso, os chinelos
da minha avó, marcando o ritmo exacto
das tarefas, traz-me o xaile macio
e no silêncio faz-me um casulo com ele,
para esperar a lua e ouvir os rumores
de andorinhas e estrelas cadentes,
futuras aprendizes de anjos que
já partiram e ainda habitam em nós.

Assim, enraizada entre o Tempo e a casa vazia,
fico nos silêncios de púrpura macios,
Pressinto os anjos na luz dos círios à lua
velando-me na casa verdadeira que habita em mim.
Agora, finalmente abro a porta castrada,
ao fundo, a minha avó oferece-me biscoitos


de mel e canela, para adoçar a dor da amputação
ao entrar ali, na casa grande, sem mim.

domingo, 20 de novembro de 2011

Ansiólitico


Ansiolítico

As raízes frias enterram-se arenosas
ramificam-se cada vez mais frágeis,
raquíticas e podres avançam febris
nas convulsões freáticas do chão.

Abro o frasco pacificamente incolor e
de um sorvo engulo mais uma promessa,
um milagre capaz de tirar das entranhas
todas os bolores de uma vida soterrada.

Os olhos procuram-me no vazio, esfumando-se
e com gritos e dor, ao lado dos pulmões abertos,
as costelas rompem-se lancetando os ossos
ai, rompem duas asas negras, parindo-me.

Finalmente repouso, descanso em paz
Voo daqui e no canto levo-me na bagagem…

sexta-feira, 15 de abril de 2011

“Menina dos olhos de água”


Hoje o meu olhar é um leão de papel,
E o meu corpo um barco num ombro
forjado em imagens vãs de mentira.
Não sei se posso aportar nestas vagas
e desfazer os olhos neste mar morto
que me afoga sem máscaras, farsas,
fortalezas, liberta desta tormenta felina.

Era urgente abrir com as unhas a noite
e reentrar na carne amniótica da lua,
desparir-me nos seus ecos maternais...
Mas só no fundo da cal mortal dos algares
encontro a imagem amputada do que fui,
embrulhada numa armadura de malha-de-lã,

Chamam-me gruta segura, sem chuvas precipitadas,
Mas não sabem que só fui fortaleza quando era ave trémula
e ouvia aquele canto sussurrado na lua e nos canaviais:
“ Minha menina… menina dos olhos de água..
eu só por mim quero-te tanto, que não vai haver
menina para sobrar” - fica para mim e deixa-me encantar-te.

Então os peixes eram borboletas-no-estômago,
as águas e as algas escorriam mais verdes e puras
nos meus olhos, até serem um mar de choro e risos
e em ti rebentava uma tempestade com perfume de rosmaninho e limão.

De tudo só ficou a música,
hoje sou pedra de cal corrosiva, esfinge negra, alfazema roxa
caindo por mim abaixo, até ao fundo de um algar, de uma gruta
onde possa desnascer…voltar a ser ribeira de águas limpas…
Mas será em vão:
a menina morreu …
os olhos já não são mar…
e aqui não há rosmaninho, só o ácido do limão…

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Nada mudou em mim


Os rios podem rebentar
mais fortes e altos
no mar branco e agitado
dos meus dentes e saliva.
As palavras podem ter perdido
cruzes, negros e cardos,
mas continuam as vozes
que silenciosas me prendem,
alheias aos risos do mar
e às palavras das rosas.

Nada se perdeu em mim,
nem sequer as luas rolando nos canaviais,
ou as conchas fechadas, silenciadas.
Caminho
entre as trevas e a luz
rumo à unidade.

E as rosas vão florindo
à sombra dos cardos e das cruzes,
mas ninguém vê que são negras
e não lhes sei dar cor.